Mesmo com queda recorde de mortes de mulheres, Brasil tem alta no número de feminicídios em 2019

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São 3.739 homicídios dolosos de mulheres no ano passado, uma queda de 14,1% em relação a 2018. Apesar disso, houve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídios – crimes de ódio motivados pela condição de gênero.

O Brasil teve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018, aponta levantamento feito pelo G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal. São 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média.

A alta acontece na contramão do número de assassinatos no Brasil em 2019, o menor da série histórica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O país teve 19% menos mortes em 2019 que em 2018. Se forem consideradas apenas as mortes de mulheres, o que inclui também os casos que não são classificados como feminicídios, houve uma diminuição de 14% – menor, mas, ainda assim, um recorde.

É o segundo ano seguido em que o número de mulheres vítimas de homicídios cai, mas os registros de feminicídios crescem no país. Em 2019, houve uma alta de 12% nos feminicídios e uma queda de 6,7% nos homicídios dolosos de mulheres.

O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O primeiro levantamento sobre feminicídios no país foi publicado no Monitor em 2018 e, desde então, ele é feito todos os anos. No próximo domingo (8), é celebrado o Dia Internacional da Mulher.

O novo levantamento revela que:

  • o Brasil teve 3.739 homicídios dolosos de mulheres em 2019 (uma redução de 14% em relação ao ano anterior)
  • do total, 1.314 foram feminicídios, o maior número já registradodesde que a lei entrou em vigor, em 2015
  • 8 estados registraram alta no número de homicídios de mulheres
  • 16 estados contabilizaram mais vítimas de feminicídios de um ano para o outro
  • Acre é o que tem o maior índice de homicídios de mulheres: 7 a cada 100 mil
  • Acre e Alagoas são os estados com a maior taxa de feminicídios: 2,5 a cada 100 mil

Desde 9 de março de 2015, a legislação prevê penalidades mais graves para homicídios que se encaixam na definição de feminicídio – ou seja, que envolvam “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Os casos mais comuns desses assassinatos ocorrem por motivos como a separação.

Por que os homicídios caem, mas os feminicídios sobem?

Desde 2015, quando a lei passou a valer, os números de feminicídios têm crescido a cada ano no Brasil. Alguns especialistas apontam que o crime está, de fato, crescendo no Brasil. Já outros defendem que apenas o número de registros está aumentando – ou seja, que as polícias passaram a se adequar e a se familiarizar com a lei, registrando corretamente o crime.

Na opinião do delegado Robson Cândido, diretor-geral da Polícia Civil do Distrito Federal, o que tem ocorrido é um aumento dos registros. No ano passado, o DF teve 33 casos de feminicídio, ante 28 em 2018.

“Aumentou registro porque nós passamos a tratar todos [os casos] como feminicídio. Antes de 2017, teríamos um suicídio, não um feminicídio. Teria uma morte violenta ou um desaparecimento, não o feminicídio”, diz.

Desde 2017, o DF adota um protocolo em que todos os casos de mulheres mortas, desaparecidas ou que aparentemente cometeram suicídio são inicialmente tratados como feminicídio. Se durante a investigação a polícia descobrir que as motivações não eram de gênero, o crime é reclassificado para homicídio ou suicídio.

“A investigação tem a perspectiva de gênero. Ou seja, caso a mulher seja a vítima, ela pode ser vítima do filho, ela pode ser vítima do pai, do namorado” diz Cândido. “A Polícia Civil entende que nós devemos ter esse cuidado com as nossas mulheres porque, em muitos desses crimes, o homem não teria sido vítima.”

Alagoas é outro estado que apresenta alta em 2019. Foram 44 casos registrados como feminicídio, contra 20 em 2018 – um aumento de 120%.

“Pode ter havido, sim, um aumento [na criminalidade], mas também pode haver um erro de análise desses dados. É preciso verificar com cada unidade policial onde houve morte de mulher e confirmar se essa morte é feminicídio ou não para aí ter um dado mais concreto e definir se houve um aumento”, diz Eduardo Mero, coordenador da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa de Maceió.

Debora Piccirillo e Giane Silvestre, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, também afirmam que a maior parte dos estados pode estar melhorando e consolidando seus registros dos crimes de feminicídio.

“O aumento pode estar relacionado a um maior investimento na qualificação técnica de policiais para a incorporação da perspectiva de gênero nas investigações de mortes de mulheres. É o caso da Polícia Civil do estado de São Paulo que, desde 2018, passou a incluir nos cursos de atualização e formação de policiais civis conteúdos ligados ao gênero na investigação criminal, além de produzir diretrizes específicas para orientar a investigação de feminicídios”, afirmam.

As pesquisadoras alertam que a melhora nos registros é fundamental, mas que “o constante aumento do feminicídio indica a necessidade de políticas públicas de prevenção específicas para o problema, que vão além das políticas de controle da criminalidade urbana”.

“É importante, também, fortalecer e investir em políticas de educação voltadas à equidade de gênero e na valorização da dignidade e dos direitos humanos das mulheres, bem como em políticas preventivas em todos níveis de governo.”

Para Samira Bueno e Juliana Martins, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apesar da queda dos homicídios de mulheres, a análise dos indicadores de violência baseada em gênero indica que a violência doméstica pode estar, sim, em crescimento.

Dados de 2018 do Fórum indicam que o Brasil atingiu recorde de registros de lesões corporais dolosas em decorrência de violência doméstica, com 263 mil casos. Também houve recorde de registros de estupro, com 66 mil vítimas. A tendência de alta desses números parece ter se mantido em 2019, já que dados de São Paulo e Rio de Janeiro indicam que registros de violência doméstica e sexual apresentaram crescimento.

“A queda no número de homicídios femininos não significa, necessariamente, a diminuição da violência doméstica e intrafamiliar. Meninas e mulheres são diariamente vítimas de violência baseada em gênero, dentro de casa, por pessoas conhecidas e em circunstâncias ainda muito toleradas socialmente na cultura brasileira. A naturalização de comportamentos violentos e a precariedade dos dados disponíveis contribuem ainda mais para a invisibilização das vítimas que sofrem em silêncio”, afirmam.

Famílias partidas: a dor dos que ficam

Por trás de cada uma das mulheres vítimas de feminicídio está uma família partida e marcada pela dor da ausência e pela brutalidade dos crimes, geralmente cometidos por maridos ou ex-companheiros.

É o caso da família de Isabella Borges, de 25 anos, do Distrito Federal. Ela foi morta pelo ex-companheiro, Matheus Galheno, em 31 de março do ano passado. Depois de cometer o crime, ele se matou. Os dois tinham filhos gêmeos, que vão completar dois anos em março deste ano.

“Eu acordei no dia 31 de março com aquela situação, aquele grito dela já me pedindo ajuda, dizendo que Matheus queria matá-la na frente das crianças. Foi quando começou o terror na nossa família”, diz Rosana Borges, irmã de Isabella.

Ela conta que o homem falou que estava levando frutas para as crianças, mas que, ao entrar na casa, começou a ameaçar Isabella com uma arma. Ele não aceitava o fim do relacionamento dos dois.

“Ele chegou aqui na sala ameaçando o tempo todo. ‘Vou matar, vou matar, e tá engatilhada essa arma’, e eu implorando pra ele não matar e Isabella pedindo para eu cuidar dos filhos. É uma cena assim… Quando eu começo a pensar nela hoje, eu penso nessa cena do dia que ela morreu. Pra mim, foi o que ficou de mais forte”, diz Rosana.

Um vizinho ouviu os gritos da briga e acionou a Polícia Militar, mas os policiais não chegaram a tempo de evitar o crime.

“Era uma menina com ideias bem interessantes, uma menina inteligente, uma menina que queria ver os filhos crescerem. E aí isso veio acontecer na nossa família. Foi um baque muito grande, algo que destruiu muita coisa, sabe? Nosso coração hoje é bem assustado e entristecido”, conta Rosana.

Fernando Morais, irmão de Rosineide Bernardes de Andrade, também conta que, após a morte da caçula, a família perdeu a alegria que costumava ter.

“Aqui em casa não teve Natal, não teve carnaval porque não teve clima. Quer dizer, faltando a Neide… Como a gente ia superar e fazer festa sem ela estar no meio? Não é fácil não, é duro”, diz.

Rosineide foi morta pelo marido na casa dos dois, em São Luís do Quitunde (AL), no dia 11 de janeiro de 2019.

“O meu sobrinho chegou na casa e, quando foi pegar um documento do pai dele no quarto, tocou no pé dela. Ele saiu correndo para a rua desesperado e ligou para mim”, conta Fernando.

Ele conta que sempre considerou o casamento da irmã “normal”. “Todos nós sempre tratamos ele muito bem”, diz. Só depois que a irmã morreu é que Fernando soube que ela sofria uma vida de abusos dentro de casa. “Na véspera do Natal, ele deu um tapa no rosto dela que quebrou até os óculos dela. E a família escondeu, quem sabia escondeu de mim, com medo da minha reação.”

O companheiro de Rosineide foi preso em flagrante e aguarda o julgamento atrás das grades. A audiência de instrução do caso está marcada para o final deste mês.

“As autoridades, os juízes, promotores, que tomem uma providência. Cometeu o primeiro ato com a esposa, que seja punido. É esse o apelo que eu faço. Para que outras Neides não venham a morrer”, diz Fernando.

Mulheres mortas por serem mulheres

Assim como Isabella e Rosineide, as outras mais de 1.300 vítimas de feminicídio no Brasil morreram apenas pelo fato de serem mulheres.

G1 noticiou ao longo de 2019 muitas outras histórias parecidas:

  • Em Itatim (BA), a comerciante Calliane Macedo foi morta porque queria se separar do marido, o advogado Daniel Macedo Santos. Ele cometeu suicídio depois do crime. Calliane deixou dois filhos, um de 11 anos e outro de 3.
  • Em São João dos Campos (SP), Jéssica Vitória foi esfaqueada 17 vezes pelo ex-companheiro por conta de ciúmes. Os três filhos do casal estavam na casa no momento do crime. Jéssica já tinha registrado queixa na polícia contra o ex.
  • Em Santa Maria (DF), Necivânia Eugênio de Caldas foi morta a facadas pelo ex-marido na frente do filho. Amigos dela afirmaram que as agressões eram de conhecimento de todos. Ela também já tinha registrado um boletim de ocorrência contra o homem na polícia.
  • Em Manaus (AM), Aline Machado foi morta a pauladas pelo marido na frente da mãe. Aline já tinha registrado quatro boletins de ocorrência contra o homem antes. Em um deles, ela disse que o suspeito ameaçou “rasgá-la toda de faca”.
  • Em Forquilhinha (SC), Rosane Apolinário Dahmer foi estrangulada e degolada pelo marido. Ele disse à polícia que a matou porque achou que estivesse sendo traído.

Acre: maiores taxas do país

Os casos continuam a ocorrer em 2020. Um deles teve bastante repercussão: a morte da chilena Karina Constanza, com 20 facadas, na zona rural de Feijó, no interior do Acre.

O estado, aliás, tem tanto a maior taxa de homicídios de mulheres (7 a cada 100 mil) do país como a maior taxa de feminicídios (2,5 a cada 100 mil) – a mesma de Alagoas –, segundo o levantamento do G1.

O governo do Acre diz ver os números com “muita preocupação”, “mesmo que em 2019 os índices de feminicídio tenham caído consideravelmente em relação aos anos de 2017 e 2018”. A queda foi superior a 20%, destaca.

“O Acre, por meio da Secretaria de Estado de Assistência Social, Direitos Humanos e Políticas para as Mulheres e do gabinete da primeira-dama Ana Paula Cameli, criou o ‘Botão da Vida’. Trata-se de um aplicativo voltado para mulheres que já sofreram violência e estão sob medida protetiva, com o qual é possível aferir se o agressor está descumprindo a lei. A Patrulha Maria da Penha está dedicada a atender estes casos. Na plataforma, a patrulha pode ver a foto da vítima e do agressor, e o número do processo. Se a patrulha chegar ao local e averiguar o descumprimento, a simples aproximação do agressor, caso seja essa a medida protetiva de se manter distante ‘x metros’, é o caso de prisão imediata”, afirma o governo.

“Sendo assim, a Patrulha Maria da Penha bem como o Botão da Vida já se estabelecem como ferramentas de combate ao que se denomina de ‘absurdo fato’ de ter mulheres em situação de risco de morte, agressão física, moral, bem como cerceamento de sua liberdade emocional. Além disso, o governo tem constituído uma ampla rede de parceiros, que atuam na persecução penal, visando não só concluir os inquéritos, pela identificação das autorias, mas ao tratamento das famílias que tem os seus direitos violados. Recentemente o governo lançou a campanha de enfrentamento de combate à violência ‘Acre Pela Vida’. Dentre os vários projetos, estão as ações realizadas nos bairros mapeados com maior incidência de crimes violentos.”

Por Clara Velasco, Gabriela Caesar e Thiago Reis

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