Médicos brasileiros investigam mortes de crianças por covid-19

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Patologistas da USP foram primeiros a provar presença de vírus no coração de paciente infantil com forma rara da doença e tentam desvendar mecanismos por trás de óbitos de outras crianças.

“A pergunta que eu mesma me faço é aquela que não sabemos responder: afinal de contas, do que estão morrendo essas crianças?”

Com essas palavras, a médica patologista e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Marisa Dolhnikoff define, em entrevista à BBC Brasil, a missão de um grupo de pesquisadores brasileiros que se destaca por usar um método particular de autópsia para estudar — e tentar explicar — as mortes por covid-19 entre crianças.

“A pergunta que eu mesma me faço é aquela que não sabemos responder: afinal de contas, do que estão morrendo essas crianças?”

Com essas palavras, a médica patologista e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Marisa Dolhnikoff define, em entrevista à BBC Brasil, a missão de um grupo de pesquisadores brasileiros que se destaca por usar um método particular de autópsia para estudar — e tentar explicar — as mortes por covid-19 entre crianças.

A Universidade de São Paulo tem tradição no uso da autópsia como instrumento de pesquisa e a equipe trabalha em ritmo acelerado: explicar o que está levando as crianças pode ser crucial para que outras sejam salvas.

Entenda como a covid-19 se apresenta nas crianças, o que se sabe sobre os mecanismos que levaram algumas delas a morrer e por que médicos patologistas estão tendo um papel crítico no enfrentamento à pandemia.

Covid infantil ‘clássica’

Para a pediatria, crianças são pacientes com até 18 anos de idade. Estudos indicam que este grupo, quando infectado pelo novo coronavírus, tende a ser assintomático (64,5%, segundo estudo recente realizado pela prefeitura de São Paulo) ou apresentar quadros leves de covid-19.

Óbitos são raros. No Brasil, mortes nesse segmento representam um pouco mais do que 0,6% do total de óbitos registrados. Até abril, manifestações sintomáticas da doença identificadas em crianças seguiam o padrão que é mais comum em adultos, onde o paciente apresenta doença respiratória.

A pediatra do Hospital das Clínicas Juliana Ferranti, coautora do estudo de caso, explicou em linhas gerais como essa forma da covid-19 se manifesta:

“Os sintomas podem ser parecidos com os do adulto. Crianças podem apresentar quadros leves, com febre, tosse e desconforto respiratório. Outros sintomas, como mialgia, náuseas, vômitos e dor de cabeça também podem estar presentes”, escreveu a pediatra em e-mail para a BBC Brasil.

Essa forma, que podemos chamar mais “clássica” da covid-19 na criança,tende a acometer pacientes com comorbidades, como câncer, por exemplo, explica a patologista Dolhnikoff.

“Uma criança morrer por insuficiência respiratória pela covid pode acontecer, mas são poucos casos”, responde.

Mas a partir do final de abril, começaram a surgir relatos de uma manifestação atípica da doença — também em crianças sem comorbidades.

SIM-P, a covid infantil atípica

Essa outra apresentação da covid-19 em crianças está sendo chamada de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P).

“A Síndrome Inflamatória Multissistêmica em crianças é uma doença em que diferentes partes do corpo podem ficar inflamadas, incluindo o coração, os pulmões, os rins, pele, olhos e órgãos gastrointestinais”, escreveu Ferranti.

Segundo a médica, essas crianças apresentam febre e uma série de outros sintomas, entre eles, dor abdominal, vômitos, diarreia, manchas na pele, olhos vermelhos e sensação de cansaço.

O estudo publicado na revista Lancet Child and Adolescent Health descreve o caso de uma criança de 11 anos que morreu após apresentar um quadro grave de SIM-P.

“O mundo inteiro está falando sobre a síndrome inflamatória, uma apresentação em que as crianças podem ficar com quadro clínico grave, e algumas podem morrer”, diz a médica, autora principal do estudo de caso.

“Quando ficam graves, é por doença no coração. Elas têm miocardite, uma disfunção cardíaca.”

O estudo esclareceu uma questão que intrigava os especialistas: qual seria a relação entre o coronavírus e o quadro inflamatório sistêmico (incluindo a miocardite)?

A figura 1 mostra uma célula muscular cardíaca da criança cujo caso foi descrito no estudo. A imagem original foi produzida em tons cinza, mas para melhor visualização, nesta imagem, o núcleo da célula está artificialmente colorido em azul.

Em e-mail para a BBC Brasil, a bióloga e professora da FMUSP Elia Caldini, responsável pelas imagens, explicou o que estamos vendo:

“A maior parte do citoplasma está preenchido por miofibrilas (que aparecem aqui como massas escuras). Ao se contraírem, as miofibrilas promovem o batimento cardíaco eficiente e regular em um coração normal.”

Mas na figura 1 nota-se algo diferente: “Há regiões nas quais as miofibrilas apresentam-se degeneradas, como pode ser visto na área delimitada pela linha vermelha. No caso dessa criança havia muitas células musculares cardíacas total ou parcialmente degeneradas.”

Ela revela “a presença de vírus com tamanho e forma de Sars-CoV-2 (indicados pelas setas) no interior das células musculares cardíacas lesadas”, disse Caldini, que é chefe do Centro de Microscopia Eletrônica da FMUSP.

Dolhnikoff explica por que a descoberta é importante:

“Nesse trabalho, mostramos que, na verdade, esse quadro de insuficiência cardíaca foi (causado) pela presença do virus no coração.”

“O vírus está implicado como agente causal por dois mecanismos: primeiro, pela lesão direta nos tecidos, segundo, pela resposta inflamatória local (no coração) e sistêmica.”

“Fomos o primeiro grupo a fazer a relação direta entre a presença do virus no coração causando uma inflamação no coração que levou ao óbito da criança.”

A SIM-P em números

O número de casos registrados da SIM-P no mundo é pequeno.

Nos Estados Unidos, país com o maior índice de pessoas infectadas pelo coronavírus, o Centro para o Controle de Doenças (CDC) registrou, até o início de setembro, 792 casos da síndrome e 16 mortes.

No Brasil, são pouco mais de cem registros, diz Dolhnikoff.

“Estou falando de registros da síndrome, não óbitos. Óbitos são 2 ou 3% disso.”

“São poucos casos, não podemos ser alarmistas”, ela diz. “Mas as sociedades pediátricas no mundo estão lançando alertas para as comunidades médicas, para que se atentem a esse tipo de apresentação atípica da covid-19. Para que façam a testagem, para que não deixem de diagnosticar a doença.”

A contribuição da patologia

A covid-19 trouxe para a boca de cena um tipo de médico que não trata o paciente, ele trabalha nos bastidores: o patologista. E a razão de ser da patologia, diz Dolhnikoff, é entender o mecanismo por trás da doença.

“Sempre que você tem um melhor entendimento, tem condições de propor um melhor tratamento.”

Uma das ferramentas usadas pelo patologista é a autópsia, ou seja, o exame do cadáver. E é nessa área que Dolhnikoff e equipe se sentem bem posicionados para fazer uma contribuição.

“Aqui na USP, a autópsia virou instrumento de pesquisa científica. Somos um dos maiores centros de autópsia do mundo.”

O grupo redobrou seus esforços e trabalha longas horas, ela conta.

“É a pressão da situação, dessa vontade que a gente tem de trazer respostas mais rápidas. Isso está acontecendo com toda a classe de pesquisadores, muita gente parou o que estava fazendo para trabalhar com essa doença.”

E os desafios são imensos.

O boletim epidemiológico especial 29 do Ministério da Saúde diz que 796 crianças (com até 19 anos) morreram de covid-19 no Brasil até o final de agosto, comenta a médica.

“E voltamos ao começo”, diz. “Se morreram quase 800, sabemos do que morreram?”, pergunta.

“Não sabemos, não temos registros específicos. Pode ser que haja casos de síndrome inflamatória no meio, pode ser que tenham morrido pela forma mais clássica.”

Na ausência de respostas para o total de óbitos no país, a equipe da FMUSP concentra seu foco em explicar todas as mortes de pacientes crianças por covid-19 no Hospital das Clínicas — foram cinco, incluindo-se aquela descrita no estudo de caso.

“O estudo continua”, diz Dolhnikoff. “Estamos investigando os mecanismos envolvidos no óbito de outras criancas.”

“Como elas apresentam manifestações de alteração de vários órgãos — coração, trato digestivo, pulmões — é importante a gente saber se os mecanismos que levaram ao óbito podem ser distintos do caso que a gente já estudou”, ela explica.

Feita essa análise, seria importante entendermos as condições sociais das crianças que têm casos graves, diz a especialista.

“Quem são essas criancas?”, pergunta.

“Seria importante saber seu nível de exposição ao vírus. Tiveram contato com carga viral mais alta, tiveram condição de fazer distanciamento social? Tiveram dificuldade de ter atendimento?Procuraram atendimento tardiamente?”

Entender tudo isso pode ajudar a explicar o que existe em comum entre elas. E, possivelmente, dar a pista sobre quem são as crianças mais vulneráveis. Mas um estudo dessa abrangência teria de contar com a colaboração de outros especialistas.

Por agora, Dolhnikoff e sua equipe se contentam em oferecer algumas peças para o grande quebra-cabeças que é a covid-19.

Na patologia “você vê, você enxerga a doença no local onde ela está acontecendo”, ela diz.

Não temos todas as respostas, “mas temos todas as condições de ajudar a responder. Porque quando você faz a autópsia, traz informações que não tem como trazer sem estudar o tecido. Você vê o vírus lá, machucando, lesando aquele tecido.”

Técnica ‘brasileira’ de autópsia

Em sua pesquisa, a equipe da FMUSP trabalha com um método de autópsia que hoje é único no mundo, a autópsia minimamente invasiva guiada por ultrassom.

Dolhnikoff explica que, como a doença é muito contagiosa, esse método oferece mais segurança às equipes.

“Não só para os médicos, mas também os técnicos de autópsia e as pessoas que preparam aquele corpo.”

O método consiste em retirar amostras de tecido usando uma agulha, como se faz em biópsias de pacientes vivos.

“A autópsia minimamente invasiva são múltiplas biópsias em vários órgãos e a gente coleta material sem ter de abrir o corpo”, explica.

“Isso é difícil de fazer, você pode errar porque não sabe onde está a agulha.”

“A novidade do grupo brasileiro é que a autópsia é guiado pelo ultrassom. A ultrassonografista da equipe, dra. Renata Monteiro, localiza o órgão, vê qual é a área mais doente e direciona a agulha para o lugar certo.”

“É uma coisa que só se faz aqui, no nosso grupo.”

por

BBC NEWS BRASIL

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