Enquanto penso na forma de iniciar esta coluna, cujo título remete à trágica situação econômica, política e, sobretudo, moral em que nos encontramos depois de apenas três anos de inéditas investigações policiais eficientes e devastadoras sobre a corrupção no Brasil, provavelmente uma mulher está morrendo em decorrência de um aborto clandestino. Muito provavelmente, pois morrem quatro por dia. Soma total em 2015 – daquelas que procuraram socorro em hospitais e mesmo assim morreram: 1.664. Em 2016, até o mês de setembro foram 1.215 mortes. Também em 2016 quase 124 MIL MULHERES procuraram hospitais em decorrência de complicações por abortos ilegais. Os dados são do próprio Ministério da Saúde, que adverte: “fazer aborto clandestino é prejudicial à sua saúde”. Só que como o aborto não está legalizado, as mulheres têm que fazer clandestino mesmo e correr o risco de morrer. Que mundo é esse?
Diante de números como estes, maiores que os números de vítimas de muitas guerras por aí, quem é hipócrita o suficiente para dizer que defender a criminalização do aborto é defender a vida deveria ser internado numa instituição correcional já que não existe, que eu saiba, nenhuma instituição fechada que nos proteja de hipócritas, com ou sem cargo parlamentar ou religioso, que ficam a proferir, com uma falsidade torpe, um discurso de “serhumaninho bondoso” enquanto uma verdadeira tragédia está acontecendo. Não há argumento que sustente tal posição. Ninguém em sã consciência defende o aborto. Trata-se de reconhecer um mega problema de saúde pública e encará-lo para atenuá-lo, o que implica, além de legislação específica que regule o ato de abortar, a promoção de orientação e discussão sobre sexo e sexualidade com os jovens, orientações para prevenção à gravidez etc.
Mas no Brasil é sempre assim: a gente não gosta de discutir os problemas de forma séria. A gente gosta de ter palpite sobre os pecados e os deveres alheios. A gente não gosta de discutir causas, a gente gosta muito de atacar os efeitos. Não fosse assim, não estaríamos agora tentando justificar a morte de 177 pessoas em apenas um mês no Espírito Santo, em decorrência das paralizações da polícia e nem procurando formas de construir presídios e mais presídios para as quase 730 MIL pessoas que já estão presas no Brasil. Aliás, ninguém quer discutir por que 479 pessoas foram assassinadas num único mês – janeiro deste ano, em Recife. E lá nem teve paralização de polícia para justificar. 479 PESSOAS ASSASSINADAS NUM MÊS! Tudo isso deu na televisão. Ninguém quer discutir nada a sério. Muito menos as razões que possam explicar o fato de que atualmente temos 306 pessoas presas para cada 100 mil habitantes, enquanto no mundo a média é menos da metade disso, ou seja, 144 para cada 100 mil habitantes.
Da mesma forma que no debate sobre o aborto, ao contrário de nos aprofundarmos sobre as causas do problema da criminalidade desesperadoramente ascendente, que envolve discutir a falência do Estado enquanto “detentor legitimo da violência” (ou seja, reconhecer e buscar as razões pelas quais parte expressiva da sociedade está quebrando o pacto fundamental que garante seu equilíbrio sob as regras de um Estado de Direito e tomando para si a violência como instrumento de coerção), nós ficamos discutindo que faltam presídios, como deveriam ser os presídios, e preferimos dizer que os “marginais” são maus, nós somos bons e que eles têm que estar presos e nós, livres. A culpa é sempre dos outros.
Nenhuma sociedade melhora se não tiver condições morais, éticas e, portanto, culturais, para fazer autocrítica e corrigir rumos. As questões econômicas são mais consequência do que causa. No momento, a nossa sociedade está travada. Nossos representantes não são lideranças que possam nos levar a esta autocrítica. Nós, creio, também não estamos desejando grandes questionamentos. Queremos sair da crise logo e pronto. Acreditamos que tudo melhorará como num passe de mágica. Não vai melhorar não, tá?!
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